Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

DIZEM QUE É CORAGEM

Dizem que é coragem. Que é coragem a Elisabete, de 11 anos, só beber meio copo de leite por dia, com sede de mais. Dizem que é coragem. Que é coragem a Elisabete e a irmã viverem numa casa insalubre, húmida, propícia a todo o tipo de doenças. Dizem que é coragem. A Elisabete e a irmã terem mudado, entretanto, para casa dos avós, onde mora a tia e a outra tia, e o tio e o outro tio. E o cão. Dizem que é coragem. A Elisabete continuar na escola, no quarto ano aos 11 anos, depois de ter chumbado. Chumbado de faltas, também, daquelas em que fica(va) em casa a tomar conta da irmã. Dizem que é coragem. O Ricardo, de 13 anos, ver os cereais a esgotarem-se, à espera que a mãe traga comida da Igreja. Dizem que é coragem. O Ricardo tomar banho uma vez por semana, em casa da madrinha, porque não há dinheiro para o gás, em casa, durante a semana. Dizem que é coragem. O Ricardo ter por sonho ser operado à anca. Dizem que é coragem. O Vítor, de 8 anos, ir buscar comida ao Banco Alimentar Contra a Fome. Dizem que é coragem. O Vítor ter vivido numa barraca, com buracos no tecto e água a entrar pelo chão. Dizem que é coragem. O Vítor ter por sonho ter uma bola de futebol. Dizem que é coragem. A Ana, de 10 anos, não ter ido à praia, este Verão, por a mãe não ter dinheiro para o bilhete de comboio. Dizem que é coragem. O Tiago, de 9 anos, viver no mesmo quarto dos pais e irmãos, no qual quem se levanta primeiro tem mais hipóteses de primeiro pisar o outro, sem querer. E o Tiago para quem a colecção de cromos do Mundial ficou para o Brasil 2014.
Dizem, e dizem os comentadores, os fiscalistas, os economistas, os especialistas e os experts, todos os istas que passam na tvcabo que por acaso não há em casa da Elisabete, do Ricardo, do Vítor, da Ana e do Tiago que assim não ouvem tão sábias criaturas, que houve coragem em reduzir as despesas. Não sei se os istas, não sei se os bárbaros de que falava Gasset, se apercebem de que as despesas são também com as famílias que ganham mais de 628€ e deixam, agora, de receber abono de família; ou com os que ganham menos de 420€, e que recebiam 43€ por cada filho com mais de um ano, e vão deixar de receber, pelo menos, esse exacto montante; ou, ainda, que os que recebem, em média, 88,92€ de RSI vêem, com apreensão, os cortes em 20% neste instrumento de uma reduzidíssima mitigação da pobreza. Sei que os istas, se conhecessem a Elisabete, o Ricardo, o Vítor, a Ana e o Tiago não falavam assim.
Dizem que a melhor, ou mais eficaz forma de demagogia é trazer casos concretos e generalizar. Em Portugal, há 23% de crianças pobres. Não se trata de generalizar, em nome de qualquer meia-dúzia de casos concretos. Trata-se de dar nome e de personalizar, o que alguns gostam de tratar em gráficos e estatística. Houve coragem, sim, mas por parte da revista Sábado, que este fim-de-semana publicou uma reportagem de leitura obrigatória. Que é mais um murro no estômago da cidadania, e honra o jornalismo. Responsabilize-se quem permitiu que chegássemos aqui, desde logo. E, se estamos realmente preocupados com os desvalidos, apoiemos plataformas políticas – para além das ajudas particulares - que procurem não apenas na denúncia, mas na construção de soluções, que este grupo de pessoas não sofra ainda mais. Que isso se faça já, relativamente a este orçamento de Estado. Que se negoceie em nome deles e por eles. Que não se recuse toda e qualquer negociação em nome de uma virgindade política que não ajuda a resolver nenhum problema, nem, por outro lado, em nome de um tacticismo obsceno.
Uma antropologia em que a primazia do outro fosse uma realidade, trar-nos-ia, diariamente, a epifania do rosto do indigente (para citar Levinas), o outro que é estrangeiro, órfão, viúva, pedinte, o outro que me olha de cima, que exige e tem direito a exigir. Nas relações interpessoais e na vivência política, não devemos esquecer a advertência de Gevaert (em O Problema do Homem): “Sejamos concretos: amar um ser humano significa fazer o possível para que ele possa comer, vestir-se, ter uma casa, aceder à educação e à cultura, ter segurança social e desenvolver livremente as dimensões fundamentais da existência. Nenhum amor autêntico pode esquecer que o ser humano tem um corpo, é indigente e é chamado a realizar-se no mundo com os outros. Por isso, o amor cria também estruturas de direito e de justiça”.
Longe das egologias que centram o homem em si (mesmo), na sua consciência, na sua relação com a matéria; longe dos colectivismos, onde o EU não passa de uma peça numa engrenagem e está despersonalizado em função de uma grande sociedade, o TU é o caminho de cumprimento do homem-ser-com-e-para-os-outros-necessitado-de-amar-e-ser-amado. Muitas das nossas discussões públicas deviam partir da antropologia que temos subjacentes: que é para ti o homem? Para Adriano Moreira, texto tão lúcido ainda esta semana no DN, o homem ocidental, se quer dar lições noutras/para outras paragens, tem que começar por se concretizar agora e aqui. E isso passa, e cito-o, pela aplicação da “principiologia do Estado Social”. Quem conhece o pensamento democrata-cristão não se espanta que na memória do tempo de vésperas de um dos últimos moicanos – como explica Tony Judt – a Bragança dos meninos descalços a irem para a escola na neve invernosa, não seja modelo a imitar tantas décadas depois.


Pedro Seixas Miranda

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