Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

DA GRAMÁTICA DOS AFECTOS (II)

Regressamos aonde nunca tínhamos saído, afinal, ao longo dos três dias de discussão e debate: aos desafios colocados e postulados pelas neurociências que, bem o sabemos, exercem, em nossa época, grande fascínio/influência sobre o mundo em volta e respectivo zeitgeist. A teologia, mais até, a (re) compreensão do homem pelos homens de hoje, teria de os ter em mente e de os fazer passar pelo crivo de exigente exame crítico. A conferência final, do Prof. Miguel Real, foi resposta global - verdadeiramente iluminadora - à visão do homem – nada asséptica, por sinal, como tantos crêem – que vem sendo afirmada por um vasto conjunto de neurocientistas, em diferentes latitudes.
Estes mesmos neurocientistas – americanos ou franceses, por exemplo – que afirmam que a mente/razão é produto do cérebro: o cérebro causa a mente. Só podemos pensar com o cérebro (Searle, Damásio, Popper, Putnam, etc.). O que os behavioristas, cognitivistas (partem dos estudos lógico-matemáticos das ciências da informação), ou neurólogos (partem da anatomia do cérebro), para quem a paixão, a inteligência, a razão só têm uma sede – o cérebro, pois claro – não conseguem explicar ou responder prende-se com três questões essenciais: a) a criação de valores universais; b) a criação do conhecimento sobre valores universais; c) a existência de conceitos sem imagem como suporte do significado. A (pura) relação corpo-mente é, manifestamente, insuficiente para lhes cabal resposta.
Aproximando a lente: “amor” e “Deus”, para exemplificar, não encontram expressão nestas teses; enquanto criação da própria humanidade – mesmo supondo tal hipótese – existe a ideia de Deus: ideia de Deus enquanto símbolo de infinito, eternidade, omnipotência, omnisciência, perfeição. Amor que não abrange a minha mulher, o meu filho, os meus amigos – pois este amor se encontra já nos primatas – mas amor de toda a humanidade, amor aos próprios inimigos – este amor não encontra expressão lógica: “não há expressão lógica para a frase: ‘o amor de Deus’ ”.
Esta criação de valores universais, de que, aliás, a Bíblia é repositório, não tem lugar na investigação neurológica. Vejamos: dedução, indução, complexidade. Nenhum dos métodos de carácter lógico-matemático nos permite aceder a um ponto indeterminado como Deus. “Deus seria a expressão do cálculo como do calculador”; Deus é “fora de série”, Deus é “paralelo ao mundo”, Deus é “transcendente ao mundo”, dir-nos-iam.
A ideia de Deus é inata. Como Descartes sabia, através da experiência não se chega a Deus; do finito não conseguimos dar o salto para o infinito – e, portanto, Deus tem que ser postulado – como também faz Kant. Ou, na sabedoria clássica de Anaximandro, Deus como aquilo que não tem perímetro, que não é limitado. Do campo da neurologia nunca se explica como as palavras “Deus”, “espírito” chegam até nós.
António Damásio diz-nos que a consciência estabelece planos de imagens (imagem do copo, da garrafa, etc.; de resto, é Professor de imagologia). Acontece que há conceitos que não têm imagem (ex: amor), não têm referente. O infinito não tem imagem, a omnisciência tão pouco. Se se afirma que o meu cérebro só trabalha com imagens, então como criar valores/ideias desprovidos, totalmente, de imagens?
Mesmo tendo em conta a navalha d’Ocham – pela expressão se entende a necessidade de não multiplicar conceitos, a simplicidade científica – carece-se de um outro conceito que dê conta de uma esfera da realidade historicamente designada por espírito. Chamar-lhe-emos, precisamente, este nome tradicional - espírito.
Sistematizando, poderemos dizer que face ao problema em apreço temos (i) a posição monista – que é comportamentalista, fisicalista, biológica, culturalista – que afirma: “os cérebros causam a mente” (Searle, pág.48). A mente identifica-se com o espírito. Na formulação – culturalista – de Popper há três dimensões – corpo, mente, espírito – mas sendo o espírito criação da mente; (aquilo) tudo o que a mente criou; (ii) a posição religiosa clássica – para a qual a alma ou espírito acresce ao corpo (tese dualista ou descontinuista); (iii) a posição transcendentalista (defendida pelo nosso autor/conferencista): o corpo humano é a casa do espírito. Este transcende o corpo, mas não se realiza sem ele. O espírito a existir sem corpo tem de operar uma transfiguração: não é mais o espírito humano. A mente nasce contra o corpo, isto é, da necessidade de prevenir o mal (a doença, a carência, a morte, o sofrimento, a incerteza quanto ao futuro, os ataques do inimigo…). O espírito forma-se para dar sentido à união corpo-mente, estabelecendo finalidades para a existência do corpo e da mente, criando a esfera dos valores morais e conceitos intemporais. Em suma, precisamos do nosso corpo. Da mente. Do espírito. O eu engloba estes três níveis: razão, entendimento, intelecto (logos, ratio). Quem pretender retirar desta equação o espírito tem que responder aos três desafios – a), b), c) – formulados, de modo fisicalista (e até ao momento não houve esse eureka!).
A mente é máxima exploração do que o corpo faz no seu interior – registam os neurocientistas. Com a mente-razão – ou, a partir do neo-cortex – nasce: a descoberta do fogo; a família; a casa; a linguagem. Ora, com o espírito nasce: o símbolo (condensado de significado num único objecto); a consciência do tempo; a consciência da morte; a criação de conceitos universais; a criação de valores e finalidades, ou seja, nasce a transcendência.
Esquematicamente, poderíamos elaborar em torno da emergência do corpo com o Pitecus, em que é a emoção e animalidade a predominar; a mente a surgir com o Pitecantropo, onde situamos a origem da razão e a fase de sociedade; finalmente, o espírito com o homo (ou melhor, o homo com o espírito), formação de valores e conceitos, tempo de humanidade. As emoções foram o que trouxemos da animalidade. Damásio mostra que a razão instala-se sobre a emoção: se não há emoção, não há razão. Sem o horizonte da emoção, não há razão. A emoção já escolheu, mas põe a razão a pensar o que é melhor para nós.
Mas como passamos do Pitecus ao Pitecantropo? Eis um mistério (a permanecer).
Não é apenas a cruz de Cristo como símbolo que é impossível de explicar do ponto de vista biologista; é, também, curioso exemplo, a meia-lua desenhada sobre o couro cabeludo com que os tupis surpreenderam Pêro Vaz de Caminha na descoberta do Brasil. Meia-lua, afinal, sobre a cabeça com vista à atracção do espírito do astro – a lua, claro está – no sentido de fertilizar. Símbolo – mistério que não há neurologia que o explique. Mistério – acentua, Miguel Real. Se colocarmos “Deus” no lugar de “mistério” talvez nos sintamos mais confortáveis – e confortáveis estão os fisicalistas ou culturalistas, onde tudo é – exclusivamente – biológico. Apeguemo-nos, pois, à contemplação do mistério.
Como passamos da emoção para a razão? De acordo com a neurobiologia, repetimos, a mente é o máximo da biologia que o corpo comporta. Mas o que queremos afirmar é que a origem da mente/razão encontra-se na antecipação dos acontecimentos, simulação dos acontecimentos, previsão dos aspectos negativos da realidade: o mal. O homem que atira á gazela. Fixemos a imagem. Aqui nasce a razão (Nietzsche). Mão direita e hemisfério esquerdo a funcionar. Antecipa-se a fome, o sofrimento. Foi por prevenir coisas más que a razão nasceu (e pensemos naquele deus da antiguidade clássica que era, simultaneamente, deus da guerra e da inteligência). Para Teixeira Rego, grande intelectual português (nortenho) – com obra importante no início do século passado – o homem nasce quando deixa de ser frugífero – quando deixa de comer fruta – e passa a comer carne.
A razão nasce, então, para suprir o mal: violência, intempérie, carência (calamidades), sofrimento, dor da partida (morte), sofrimento físico. A linguagem nasceu para avisar que um perigo se aproxima (quem, por exemplo, convive com melros, sabe que quando o homem lhes aparece, o melro vai fugir e fazer uma grande “chiadeira” – sua linguagem).
O mal é identificado com o que provoca a emoção (guerra, sofrimento, violência); a razão vai ultrapassar e combater o mal.
Se o corpo é a casa do espírito, a mente estatui-se como intermediário entre ambos. Como intermediária, não possui lugar próprio – por isso, a razão ou mente inclina-se, continuamente, ora para o corpo – obedecendo-lhe -, ora para o espírito, vinculando-se-lhe.
Para Damásio, o que é, afinal, o bem? É, simplesmente, isto: uma sensação geral agradável do cérebro (corpo). Ao invés, para a posição transcendentalista é o espírito que vem para fazer o bem. Será ele que irá encontrar os valores transcendentais. O espírito excede e superioriza o corpo, distingue-se do corpo e da mente pela natureza dos seus próprios resultados: cria um campo de transcendência que elimina os factores constituintes do corpo (o aqui e agora do tempo e espaço), criando conceitos universais, de referentes vazios de imagens (nunca teorizados por Damásio). Cria um campo de valores que tanto esvazia as pulsões do corpo, negativizando-as (greve de fome, solidariedade entre corpos, as emoções transformam-se em valores espirituais), como as espiritualiza, emprestando-lhes um sentido ético.
Miguel Real, o ouvinte atento de Corelli e de Mozart, experiência estética evocada, sabe, afinal, que às neurociências – e aos reducionismos, particularmente – falta esse espectro capaz de nos ler e explicar na emoção que sentimos perante um quadro, uma composição musical, a arte pela arte, a beleza pela beleza. A greve de fome é o inexplicável pelo cérebro tanto quanto é, já se vê, atentado contra o corpo (o suicida, paradigma da inexplicação cerebral): a greve de fome só se entende por solidariedade de valores.

Pedro Seixas Miranda

1 comentário:

Antonio Rodrigues Ventura disse...

Não sejam tão fechados aos resultados da investigação científica. É evidente a quem pensa que a criação de valores universais é uma criação do cerebro. O conhecimento desses valores ´´e resultado da actividade cerebral. Conceitos sem imagem derivam do cérebro. A Fé sem a Razão já não é ,mais credivel.
A Gramática dos Afectos entusiasmou-me, mas foi uma desilusão. ~Tenho muita pena, mas eu esperava muito mais. A vossa gramática dos afectos está bem para incultos. Não há por ai quem saiba dizer melhor? O científico não pode contrariar-se com o religioso mas têm que ser dois discursos complementares. O autor das palavras que li não teve em conta o que a neurociência diz e atreve-se a desvalorizá-la. É bom ter fé mas é preciso ter razões para essa fé. Uma fé esclarecida.