Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

SEMANA DE ESTUDOS TEOLÓGICOS - DA GRAMÁTICA DOS AFECTOS

Principiou a semana de estudos teológicos de 2011, em Braga (15-17/02/11, Auditório Vita) este ano subordinada à temática “Gramática dos afectos”, com uma alocução, pela Professora Isabel Varanda, ao encalço de uma conciliação entre a teoria darwinista da evolução com a perspectiva cosmológica cristã. O escopo de situar o cristianismo face aos desenvolvimentos científicos hodiernos; ler estes à luz da mensagem/pessoa de Cristo, ficou bem patente.
Neste contexto, a teoria do desígnio inteligente, com o postular de toda uma ordem – criacional/criativa – perfeitamente concluída surge-nos como insuficiente explicação. Há possibilidade de compatibilização de Deus com um mundo neo-darwinista. Desde logo, sempre que “não se procure na Bíblia informação de natureza científica”, mas, ao invés, se indague aí “respostas quanto á realidade última”. A teologia não pode permanecer “como se Darwin não tivesse existido”, ignorando, ademais, a forte repercussão/ressonância que obteve/obtém a teorização que produziu. Importa, contudo, por outro prisma, separar as águas da teoria da evolução de Darwin face a ulteriores desenvolvimentos – maxime, Dawkins – que parecem negar qualquer lugar para o amor ou felicidade – humanas – consumidos em favor da (pura) sobrevivência/luta (individual; mesmo se travestida de simpatia ou favor pelo outro).
Importa precisar a insuficiência do desígnio inteligente e o respaldo conceptual fornecido pelos evolucionistas, quanto a uma economia da cosmologia cristã: a criação está/permanece em curso; não menos agora do que no princípio – acção instantânea e simultânea para todas as espécies. “Todo o dia é aurora de criação”, ou, nas palavras de Bergson, “a vida é mais uma tendência cósmica do que uma circularidade completa”. Temos, em síntese, seres perfeitos na sua ordem, mas não uma ordem – criadora – completa (terminada).
Incontornável, o tema do sofrimento não poderia deixar de ser colocado, neste âmbito, também: se o sofrimento é plausível em um mundo em evolução, já “moralmente é intolerável”. Como compaginá-lo, pergunta clássica – o sofrimento, ou, poderíamos dizer, o mal -, com Deus? “A graça de Deus deve ser [a de] deixar ser o mundo ele mesmo”, promovendo-o, através de um “auto-afastamento”. A “autonomia do mundo” apresenta-se como decisiva para a sua relação com Deus. Relação profunda. Não se trata, bem entendido, de qualquer ideia de “abandono” do mundo, por Deus; não estamos perante qualquer apagamento da Sua bondade. Do que se fala é do afastar de qualquer espécie de coerção: a acção divina é “abscondita”, mas não é abdicação. É o estimular da “liberdade de expressão (evolutiva) do cosmos, que se revela na palavra performativa do mundo”. Em suma, Deus convida, mas não constrange; Deus sente o mundo e está perdido de amor pela criatura (o vínculo criador-criatura é apresentado, paradigmaticamente, no Salmo 20); Deus é compassivo no processo evolutivo.
Naquele que numa aproximação pessoal da exposição feita, se nos afigurou como vexata quaestio e ponto mais cintilante do texto apresentado, fomos advertidos da urgência do alargar do sentido da criatividade de Deus. Hoje, ainda nos encontramos perante uma noção “exageradamente antropocêntrica” da cruz: esta tem também significado cosmológico. Quer dizer, a “vulnerabilidade”, a dimensão “indefesa” da divindade – presente na cruz, mas, assim já, com alcance cósmico/criador – impele-nos à contemplação da “humildade de Deus, auto-apagamento”, que está em íntima conexão com o “amor auto-oblativo de Deus” – centro da fé (na paixão e crucificação de Cristo).
“Deus mora na Terra e chora na Terra”. Os séculos senilizaram Deus com conceitos – imutável, impassível, omnipotente, omnisciente – a que, hoje, chamamos “o espartilho dos atributos clássicos” e que precisamos de revisitar para compreendermos que o Deus de Jesus Cristo é “eterno amor”, “mistério de amor sem fim” (logo não terminado. Impassível? Imutável? Como observar melhor tais “propriedades” divinas, á luz da “evolução”?). A religião vive, antecipadamente, uma certeza: o Deus da criação é o Deus da evolução.
Sem questionar do mérito e da absoluta necessidade do caminho empreendido – rumo a uma relação dialógica do cristianismo com as ciências e a teoria da evolução, em particular – não se deixou de perguntar (Prof. João Duque) pela compatibilização dos pobres, dos marginados com tal teoria: como se faz a afirmação destes – os pobres – face à afirmação dos vitoriosos (os mais fortes, os mais adaptados) que a perspectiva de Darwin afirma?
Assumindo a humildade e provocação ínsitas no seu texto (a carecer, ainda, de ulterior maturação), a autora da conferência inaugural destas jornadas afiançou que os pobres não são “os resíduos da evolução”, “os seus danos colaterais”, mas, antes, dela – ainda que, aqui, sem se precisar os mecanismos e o seu modus operandi – “emerge um ser ético”: “a Cruz ensina-nos que os fracos são os fortes”.
Em outro comentário (Prof. Oliveira Fernandes) ao que havia sido postulado, destacou-se que “a evolução não explica nada”: “a evolução só explica se primeiro for explicada” e que “o que humaniza o homem não são os genes (crianças educadas com cães, passado uns tempos estão a imitá-los, a ladrar, etc.), mas a cultura”; a evolução é “criação contínua”. “Deus criou-nos para [continuar] a servir”.

Sob o signo da relação Sentimento/Pensamento, do “sentimento de si” ao (e enquanto) “sentimento do outro”, assim a expressão, também detida e crítica da obra (homónima) de Damásio, da segunda conferência do dia – pelo Professor João Duque - primeiro da semana de estudos teológicos 2011.
A modernidade fundamenta-se – funda-se? - no cogito, na centralidade do sujeito, passando pela (pretensamente linear) diferenciação res cogitans/res extensa formulada por Descartes. Mas depressa se afirma a ilusão do cogito e um mundo sem centro (Nietzsche), sobretudo na pós-modernidade. Há a recuperação da (importância da) identidade e, nela, dos sentimentos (para lá do cogito). Sentimos antes de pensarmos. Para António Damásio, o “si” que existe no “sentimento de si (mesmo) ” é resultado da compreensão corpórea de si”. É, ainda, através dos sentimentos que as emoções iniciam o impacto na mente, “mas só com a consciência – o sentido de si – o sentimento de si emerge”.
Neste ponto, radical observação: para Damásio a “consciência de si” é fundamental para falarmos – para estarmos em presença – de (uma) pessoa. Assim sendo, pergunta-se pelo estatuto dos que perdem a consciência e/ou dos que ainda a não adquiriram.
“O si mesmo precede o sentimento de si” pois vemos o “si mesmo” como corpo no mundo. “Eu sinto-me a mim”. Mas é necessário ler com subtileza: este “mim” é já um outro. Sobre o tema, Husserl “tem páginas bastante mais profundas do que Damásio”. Neste último autor, podemos observar dualismos um tanto redutores: ser e conhecer, ou, noutro exemplo, corpo e cérebro (como se o cérebro não fosse corpo – comentada tal posição, com recurso a excertos da obra, já citada, do neurocientista português).
A “tendência estritamente naturalista” de Damásio apresenta-se como “muito limitada”. Mais ainda: apesar de ter detectado o “erro de Descartes” – na suposta depreciação da emoção – acaba por participar desse mesmo cartesianismo quando não se abre “ao lugar do outro no si mesmo”.
E o outro está no “si mesmo” por meio de uma pletora de momentos e meios – explanação extremamente interessante a que somos convocados. Falemos, por exemplo, nos neurónios-espelho (as experiências científicas que demonstram que pode suceder sentirmos dor…por sentirmos alguém a ter dor); na voz da consciência (consciência em que a presença do outro – e, do ponto de vista cristão, entendemos do Outro – é muito efectiva); na vocação (em que se combina a voz exterior a nós mesmos e o mais íntimo de nós, na expressão de Sto.Agostinho; na vocação, se a resposta é minha, o apelo não é meu); na finitude do tempo, em que a minha identidade depende da promessa do outro; na falta cometida por mim que não pode ser anulada – se apenas dependesse de mim, se eu não saísse de mim nunca sairia deste labirinto (da falta que não poderia ser anulada): o perdão, do outro (a mim), “supera a irreversibilidade do passado”. Veja-se que quando perdoo-o vai, nesse perdão, “dádiva gratuita e excessiva de mim”; observe-se como somos, assim, “justificados pelos outros e pelo (totalmente) Outro”.
Em suma, o “si mesmo” é pura consciência do Outro. Um “si mesmo” que se recebe –
de Outro – exige (um) “si mesmo” que se dá (pensemos na parentalidade). Que se dá ao Outro que no amor em permanência conta com a minha promessa para lhe dar futuro (pensemos no matrimónio). Pensemos, enfim, na forma de amor propriamente cristã, o agapê: modo de ser “si mesmo” cristão: sentir-se a si mesmo como filho gerado no Filho, para gerar vida, dando a vida própria ao irmão e pelo irmão: “o sentimento de si” como se sente aquele que se dá, sendo aquele que se recebe do outro/Outro.
A paixão pelo outro pode ser mais do que desejo do outro: sofrer com o sofrimento do outro (se introduzirmos o sofrimento da paixão). De resto, mesmo pensando no eros e na relação sexual qual tale, aí ainda, a procura do melhor para o outro – nessa dimensão mais estrita – é/deve ser/fazer parte do “si mesmo”. A responsabilidade pelo outro – que significa, desde logo, escuta e resposta imediata ao rosto nu, indigente, que me exige, do outro, como diz Levinas – implica recordar a pergunta “onde está o teu irmão?” e podemos mesmo ir ao ponto de nos oferecermos em substituição do outro. O Outro poderá, em síntese, ser critério – a compaixão elemento-chave – de verificabilidade do caminho de nós mesmos a nós mesmos que passa…pelo outro/Outro.


Pedro Seixas Miranda

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