Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

"Homem fatal", crónicas de Nélson Rodrigues, por Pedro Miranda

A prova de que não precisamos de estar sempre de acordo com o que lemos para nos deleitarmos, seguirmos a volúpia, exercício hedonista, com uma escrita que nos prende e contagia, está no volume de crónicas de Nélson Rodrigues, agora finalmente publicado em Portugal (pouca coisa do autor havia chegado até nós, apesar das referências quase míticas que o seu nome sempre rumorejava), selecção de Pedro Mexia, sob o título O homem fatal (Tinta da China). Trata-se da "arte da frase", como escreve Abel Barros Baptista, e de um humor soberano, seguro, fatal. Sem condescendências, nem indolência. Vital. Por exemplo, sobre os inúmeros feriados,  pontes, momentos de ociosidade dos brasileiros, Nélson Rodrigues sentencia, com a magnífica impenitência de quem assesta uma fatwa necessária, caricatura que na hipérbole, junta crónica de costumes a uma reivindicação do literário, o exagero necessário para criar distância e civilidade: "O brasileiro é um feriado (...) Era uma terça-feira e - note-se - o primeiro dia útil depois de sexta, sábado, domingo e segunda de Natal. Imaginei que, exausto da própria ociosidade, o brasileiro estivesse, no escritório, na oficina ou na pedreira, fazendo a sua pátria (...) E eu já via, com olhos de imaginação, uma praia deserta, sem uma mísera alma ou de calção ou de biquini. Todavia, quando dobro a avenida Atlântica, eis o que vejo: do Forte de Copacabana ao Vigia, era só uma multidão que daria para lotar várias vezes o maior Fla-Flu". Ou, no seu anti-comunismo, a pérola forjada para retratar a cegueira dos seus compatriotas, face ao estalinismo: "Sim, o que se sentia, aqui, por Stalin, era uma dessas admirações hediondas. Eu via homens de voz grossa, barba cerrada, ênfase viril. Em cada um dos seus gestos, a masculinidade explodia. E, quando falavam de Stalin, eles se tornavam melífluos, como qualquer «travesti» do João Caetano ou do Teatro República. O que se sentia, por trás desse arrebatamento stalinista, era um amor quase físico, uma espécie de pederastia idealizada, utópica, sagrada. Com as mandíbulas trêmulas, uma salivação efervescente, os fanáticos chamavam o Guia de «o Velho». E essa paixão era de um sublime ignóbil" (p.40). Ou, ainda, na injusta,mazinha, pérfida ironia sobre D. Hélder da Câmara que, segundo Rodrigues, olharia para o Céu apenas para saber se deve sair à rua com guarda-chuva, numa crítica a uma teologia política que, da sua perspectiva - a meu ver errada, sobre isso escrevi uma tese, mas isso aqui não interessa -, ficava pela imanência, sem remeter para a transcendência (então e a vida eterna? , perguntar-se-ia ao bispo. Há fome no Nordeste, responderia). Apegado às formas mais tradicionais de fé - "minha infância foi a época dos valores nítidos, sim, dos valores precisos. Céu era Céu. Deus era Deus. O Diabo era o Diabo. Por outro lado, o céu era a evidência do sobrenatural e, repito, por trás do azul residia o sobrenatural. E, quando o sujeito olhava para o alto, um arroubo subia de suas entranhas" (p.35) -, viu esta, a fé, tornar-se obsoleta, uma extravagância, algo tão inactual como o espartilho da Belle Époque. E, no entanto, muito esporadicamente, a missa de Domingo agarrava-o - "Ah, quando entro na igreja, e vejo o sono dos círios nos altares, e o frêmito das rezas, sinto angústias tremendas. Há em mim o despertar de velhas culpas e a memória de não sei que abjecções", p.45 - levando-o a verberar os padres progressistas: numa dessas histórias, agora mais hilariantes do que irónicas, quase sempre intercaladas com outras narrativas no seu interior, como parêntesis-matrioskas, dá conta de, numa das eucaristias dominicais em que ingressara, ter ouvido o padre dizer que "criança não peca", sendo que, em fechando o círculo da crónica, entremeada por boutades graciosas, lembra uma velha indignada com o cura que em confissão lhe pergunta a idade: "60? Aos 60 ninguém peca". Soma-se à gargalhada (que damos) a verdade antropológica que contem afiada: moral da história, sem responsabilização, a pessoa não existe, e ela tem direito a reivindicar seu pecado, quer dizer, perdão e graça; existiu quando obrou (mal), e essa dignidade não podem roubar-lha ("Doeu-me que alguém visse na criança um ser mínimo e tão amoral como um bichinho de avenca (...) E, mexendo o café, tinha a sensação de que o sermão degradara a criança. Se é verdade que um menino está isento do bem e do mal, então é um pequenino canalha", pp.45-46), ainda que a despeito de um bonzismo bem intencionado, a criança imaculada que só existe no manto diáfano da fantasia kitsh: "Lembro-me de coisas que eu fazia, aos oito, nove anos, e que me causaram lesões de sentimentos ainda não cicatrizadas (...) [Ao dar uma estalada noutra criança sua congénere] Fui varado por um sentimento de culpa que ainda hoje, quase meio século depois, me persegue (...) Desejo notar que a consciência infantil tem um dramatismo que nós, adultos, já perdemos". Para mim, num século (XX) em que o rosto adquiriu, nos contornos que a filosofia conseguiu imprimir-lhe, uma forma manifestandi de um Outro, cujo significado só poderia ser um não matarás(dignidade absoluta), e talvez porque na sensibilidade por certo permeada por essas leituras, sempre este me assomou como intocável de facto, e o pudor impedia toná-lo objecto de bofetadas, foi muito curioso e interessante encontrar esta reflexão enxertada na crónica vinda de perpassar: "Dar na cara. Não sei se nos outros povos e nos outros idiomas a bofetada tem a mesma transcendência. Mas, para o brasileiro, a bofetada é sagrada. Criei-me ouvindo o adulto dizer: «Se alguém me der na cara, eu mato, mato!"». De aí o seu estremecimento décadas depois de violar o compromisso sagrado de uma interdição alçada a imperativo.
Sem politicamente correctos, procurando o nu, o cru, a verdade sobre si, Nélson Rodrigues dá conta, em outra intensa crónica, da humilhação na escola: todos os dias, leva uma banana, que não sabia ser tão magro manjar ("No terceiro dia, comecei a ter vergonha da banana. Fosse prata, ou maçã, mas era banana. Nasceu em mim, então, a utopia do sanduíche de ovo", p.24) Dia após dia, é a gemada na sandes do colega, escorregando-lhe pelo queixo abaixo, que o derrota - mas outros há que levam goiabada e bife. Já com mulher, adulto, pede a sandwich com ovo à empregada, nunca mais esquece. Tal como a exposição à frente dos colegas, a professora a chamar e a colocá-lo de frente para o quadro, depois face a face com os colegas ("Estou de frente para o quadro-negro, de costas para a classe. E ela [a professora]: - «Vira, vira! Fica de frente!». estou cara a cara com os outros"), por fim identificado com as lêndeas detectadas no seu cabelo («Não disse?» Vira-se para a classe: - «Eu sabia! Eu sabia! Tem piolhos, lêndeas!». Levou-me para a sala da directora: - «Esse menino não pode ficar com os outros! Pega piolho nos outros!». A directora, de óculos, papada, fez uma boquinha de nojo. Depois da aula, levei para casa um bilhete da professora. E mudei de calçada para não passar pela porta de Lili"). Sente-se, palpa-se, o ambiente e o sentimento de quem alguma vez foi sujeito a semelhantes suplícios - que cheira mal, que deve afastar-se dos outros meninos («Não quero menino sujo na minha classe. Já basta o Nélson». As meninas me olhavam, e eu tinha de novo o sentimento de nudez pública"); compreende-se melhor esta condição, a literatura pode iluminar - mesmo que a redenção da ternura fraterna (ou a irmandade na desgraça), um tesouro manejado com tanta descrição e parcimónia, se abeire também: "E, de repente, vem uma pretinha lá da minha aula. Pára diante de mim, ri para mim. Olha para um lado, para outro e para trás. Estávamos sós, maravilhosamente sós. Seu riso não tem os dentes da frente. Diz baixinho: - «Eu também tenho piolhos, lêndeas»" (p.30).
Fome fome foi entre 1930-1935, para Nélson Rodrigues. O lado dickensiano, como o próprio assinala (e Pedro Mexia, na Introdução, corrobora) está, pois, bem presente, sendo que as memórias desses cinco anos estão em carne viva. A cada passo, em alguma boutique, Rodrigues pede um copo de água, por obséquio. E, nesse interim, "não estava bebendo, estava comendo água" (p.34). Se o cronista, ao referir que "o sujeito que não come não se revolta (...) Fui a menos indignada das fomes. Eu me sentia inteiramente desfibrado", pode dizer-se que quem se revolta alguma coisa tem na barriga, interpretação inversa é susceptível, igualmente, de lobrigar-se: não fora a fome, e revoltas outras emergiriam. Mas a coisa não é apenas política: "se me aparecesse a Ava Gardner, de Salomé, eu continuaria incomovível. Durante esses cinco anos, não namorei. Fui incapaz de um sentimento forte. A fome esvaziou-me; e eu me sentia oco, sem entranhas, como um autopsiado". Um retrato cruel de quem, em certo momento, foi remetido para a margem e sabe que "certos pundonores, certos brios, exigem um salário e as três refeições" (p.34). 
De igual modo, no mesmo texto em que é implacável com Sartre, e relatando uma visita deste ao Brasil, atribui-lhe razão quando pergunta: "então e os negros?". Bem podemos, de novo o dedo na ferida, falar em democracia racial que à pergunta onde estão os negros? não sabemos responder. Sim, Rodrigues o moralista, considera o prefaciador, alguém que denuncia a esquerda, mas sem demasiadas preocupações ideológicas. Talvez porque, o escanção da frase, regressamos ao início, seja o desígnio que o determina fundamentalmente, controvertido posicionamento acerca da relação com a arte, a relação artista-mundo, ele que era um declarado admirador de João Guimarães Rosa: "Obsedado como um Flaubert, estava mais interessado na cadência de uma nova frase do que em todo o Vietnã" (p.28). E ainda há muitas crónicas para ler.

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